“O Impacto das políticas urbanas em Lisboa: gentrificação, especulação imobiliária e o direito à cidade. Dois casos de estudo”
“Direito à Cidade, Urbanismo e Anarquismo: uma análise teórica”
di Mario Rui Pinto
A nossa apresentação é composta por duas partes intercaladas:
• A primeira incide no impacto de duas políticas públicas específicas na cidade de Lisboa, tendo em conta os processos de gentrificação e especulação imobiliária gerados, bem como aquilo que se pode considerar uma negação ao Direito à Cidade, no sentido atribuído por Lefebvre;
• A segunda incide na relação existente entre Direito à Cidade, Urbanismo e Anarquismo, já numa abordagem teórica e histórica.
Apenas para quem não conhece Lisboa e para se ter uma ideia da sua escala, antes de entrarmos propriamente nas questões que nos trazem aqui, importa dizer que a Área Metropolitana de Lisboa vai muito além do centro da cidade. Ocupa um território com cerca de 3000 km2, composto por 18 municípios, onde vivem cerca de 2.600.000 pessoas.
Só no município de Lisboa, segundo os últimos Censos, vivem perto de 550.000 pessoas. Ou seja, actualmente o município de Lisboa concentra aproximadamente 1/5 da população total da Área Metropolitana, o que nem sempre foi assim. As dinâmicas e movimentações urbanas têm variado ao longo do tempo em função principalmente das políticas urbanas adoptadas, da transformação da própria sociedade e dos estilos de vida, mas também das tendências e interesses imobiliários. As duas políticas que vamos apresentar conduzem e conduziram a processos de gentrificação massivos: a primeira política é o Programa Especial de Realojamento, que teve início em 1993 com a publicação do respectivo Decreto-‐Lei, voltada para o fim dos chamados bairros de barracas ou bairros informais, como geralmente são designados; a segunda política é o Novo Regime de Arrendamento Urbano, que inicia em 2012 também após a publicação da respectiva lei.
(1) Programa Especial de Realo jamento
BREVE ENQUADRAMENTO
O Programa Especial de Realojamento nasce da necessidade política de resolver o problema dos bairros degradados localizados às portas de Lisboa, que se vinham desenvolvendo desde o final dos anos 70 devido sobretudo ao afluxo de imigrantes após a independência das ex-‐colónias em África. Num primeiro momento, estes bairros cresceram sobretudo em zonas periféricas, em terrenos do Estado ou de privados, mas foram ocupando gradualmente zonas mais centrais. Mais uma vez, para termos uma ideia da escala, uma autora, Teresa Salgueiro, refere que cerca de 16500 famílias viviam em barracas na Área Metropolitana de Lisboa no início dos anos 80. Para além do município de Lisboa, o maior número de barracas concentrava-‐se e concentra-‐se nos municípios da Amadora, Loures e Oeiras. A dimensão do problema contribuiu nos anos 90 para um consenso político alargado relativamente à necessidade de uma política de habitação e de uma intervenção do Estado forte nestas matérias. Por outro lado, há que não esquecer que Lisboa foi classificada internacionalmente em 1994 a Capital Europeia da Cultura e que em 1998 ia receber a Exposição Mundial dedicada aos oceanos, portanto era de todo o interesse mudar o rosto dos bairros que circundavam a cidade de Lisboa. A somar a estas pressões havia ainda a pressão urbanística sobre espaços que nos anos 70 eram periféricos e que nos anos 90 se tornavam centrais face ao desenvolvimento da cidade e, por isso, estratégicos do ponto de vista imobiliário.
O Programa Especial de Realojamento tem como objectivos centrais:
• acabar com as chamadas barracas, ou seja, com os bairros, contando para isso com o forte envolvimento dos municípios, que logo em 1993 fizeram o levantamento das famílias abrangidas pelo programa;
• e potenciar uma mudança do estilo de vida dos moradores.
Aquando a elaboração do programa, as barracas eram entendidas como uma chaga, uma ferida aberta, cuja solução passava pela demolição total e pelo realojamento massivo das pessoas que habitavam estes bairros, estabelecendo-‐se uma relação directa entre as condições de habitação degradadas e o aumento da criminalidade. Como sabemos, esta percepção não é exclusiva do contexto português mas manifesta-‐se nesta altura em vários países da Europa, como mostra o Quarto Programa de Bases da Comissão da Comunidade Europeia de 1994. As expectativas em relação ao Programa Especial de Realojamento eram altas, mas as críticas não tardaram em chegar. Construíram-‐se conjuntos habitacionais de realojamento em zonas periféricas, geralmente distantes da residência anterior, isolados, despersonalizados, com fraco envolvimento das pessoas, os problemas sociais agravaram-‐se, perderam-‐se as fortes relações de vizinhança e entreajuda que existiam após o realojamento. Este processo ainda não acabou. Alguns bairros foram demolidos mas outros permanecem numa situação de impasse 22 anos depois a publicação do Programa Especial de Realojamento. Os realojamentos continuam a ter como base os levantamentos realizados pelos municípios em 1993. Obviamente que passados 22 anos, as famílias cresceram, quem era uma criança em 1993 tem hoje filhos e por aí em diante. Um dos bairros que se encontra neste momento em processo de demolição é o bairro de Santa Filomena, no município da Amadora, cujo terreno foi comprado em 2007 por um Fundo Imobiliário do Banco Millenium BCP, portanto são claros os interesses que estão por trás desta acção de renovação e gentrificação. As famílias que não estão abrangidas pelos levantamentos realizados em 1993 – porque se encontravam a trabalhar ou simplesmente porque se instalaram no bairro posteriormente – são despejadas há força, sob forte aparato policial, e não têm qualquer alternativa. As famílias que estão abrangidas pelo Programa Especial de Realojamento são realojadas nos bairros de realojamento já existentes. Mas como é que o município consegue casas livres nos bairros de realojamento? Através do aumento brutal das rendas. Nos últimos anos, as rendas têm aumentado e muitas pessoas, incapazes de as pagar, têm vindo a sair e a dar lugar a outros. Tem havido algumas manifestações contra este e outros processos idênticos, mas infelizmente continuam a avançar. As pessoas são ameaçadas e as organizações locais tendem a desmobilizar-‐se.
(2) Novo Regime de Arrendamento Urbano
Relativamente ao Novo Regime de Arrendamento Urbano, ele acabou por ser uma das imposições da Troika durante o programa de ajustamento, diz o governo. Este Novo Regime tem como objectivo central descongelar os contratos anteriores a 1990 e facilitar as acções de despejo. Para o efeito, criou-‐se um mecanismo de negociação de rendas antigas, permitindo ao proprietário aumentar a renda tendo como base o valor patrimonial do imóvel, e um Balcão Nacional de Arrendamento de forma a tornar estes processos e os despejos mais céleres. A lei prevê em casos específicos, por exemplo de pessoas ou reformados que comprovem não ter capacidade para suportar o aumento estipulado, um período de 5 anos, durante os quais se tem no fundo de arranjar uma alternativa. Portanto, o real impacto desta reforma dar-‐se-‐á ainda daqui a poucos anos. Entretanto, bairros inteiros começam a sentir desde já o reflexo desta medida, sobretudo os bairros considerados históricos, onde a reabilitação urbana vai a par com a gentrificação. Considerada hoje um dos melhores destinos turísticos da Europa, Lisboa tem vivido nos últimos anos precisamente em função da indústria turística, que vai desde a chegada diária de vários paquetes ao Tejo até ao afluxo constante de estudantes Erasmus, passando pela reabilitação de velhos imóveis transformados em hostels e hotéis de charme. Tudo isto tem tido forte impacto no aumento generalizado das rendas em algumas zonas da cidade. Paralelamente, o governo criou um novo mecanismo -‐ Golden Visa – com o objectivo de atrair investimento estrangeiro. Resumidamente, este mecanismo permite dar um visto automático de residência a qualquer cidadão de fora da UE que faça um investimento em Portugal superior a 500 mil euros. Obviamente que 98% dos beneficiados optaram não por investimento dito produtivo, mas sim pela aquisição de imóveis o que só veio aumentar a especulação imobiliária.
Caso da BOESG
A BOESG (Biblioteca dos Operários e Empregados da Sociedade Geral) é uma antiga biblioteca operária fundada oficialmente em 1947 em Lisboa. O objectivo inicial era incentivar a leitura e o conhecimento entre os operários e empregados da Sociedade Geral de Navegação. Desde a sua origem, a BOESG reuniu um acervo de livros que ascende, neste momento, a cerca de 6 mil. Como a grande maioria deles foi acumulada durante o fascismo, podemos dizer que muitos representam os estragos de um determinado período histórico. Por outro lado, podemos encontrar livros que propõem ideias e soluções para ultrapassar esses mesmos estragos ou as suas causas. Não só para aproveitar e disponibilizar este espólio mas, sobretudo, para lhe dar um sentido e propósito, a BOESG renasce em 2010 com um novo projecto, tornando-‐se na Biblioteca Observatório dos Estragos da Sociedade Globalizada & dos Meios Para os Ultrapassar. Mantendo o incentivo à leitura e ao conhecimento, junta-‐se a observação crítica e a acção sobre a alienação política, económica e técnica. Os livros passaram a ser organizados em secções, que representam os vários estragos produzidos pela actual sociedade globalizada – afectando directamente todos os seres vivos e o meio natural – com o propósito de os catalogar, estudar e arquivar. Procuramos uma ligação entre os estragos e os meios para os ultrapassar através da actividade crítica. Desde que o projecto se tornou Biblioteca Observatório editou 6 brochuras sobre diversos temas. Também propôs, desenvolveu e concretizou bastantes e variadas actividades, sobretudo nestes dois últimos anos. Mas todo este esforço está a ser posto em causa. No nosso caso, cujo contrato de arrendamento foi celebrado em 1960, implicará um aumento dos actuais 81 para 707 euros e sem qualquer garantia de permanência no espaço após 5 anos. Uma situação incomportável, que inviabilizará a continuação do projecto, para uma associação sem fins lucrativos e que não quer alimentar esta lógica. Não é só a BOESG que se depara com este cenário. Neste momento, quase todos os arrendatários sofrem as consequências desta lei, que mais não é do que um instrumento ao serviço da classe dominante, tornando o aumento incontornável e o despejo facilitado, remetendo assim as necessidades básicas, o acesso a espaços de convívio ou até a própria existência para última instância. Com aumentos de renda que muitas vezes ascendem aos 900%, grande parte das colectividades, cooperativas ou associações chegarão ao fim da sua existência. É, de facto, mais um estrago da sociedade globalizada. Perante esta situação, a luta da BOESG será em duas frentes: dilatar ao máximo o período de contestação judicial à aplicação da nova renda, para que haja espaço e tempo para nos organizarmos e encontrarmos alternativas, mantendo vivo o projecto; ao mesmo tempo, juntamente com outros colectivos e população em geral, discutir e desenvolver estratégias de oposição à nova lei, que despoletem e incitem a vontade de analisar, criticar e, por fim, atacar esta imensa rede de dominação.
The Right to the City, Urbanism and Anarchism: a Theoretical Approach
The relation between anarchism and urbanism is a long one. Since the beginning, that anarchists look to the geographical occupation of the space, either in cities or in the countryside, as an important step towards a better society, an anarchist society. And urbanism took an important role in this process. Together with other areas of intervention – like syndicalism, women situation and education, for instance – anarchists always thought that to fight for an anarchist urbanism was part of the path to Anarchy.
Colin Ward wrote that “there is in fact a stream of anarchist contributions to urban thoughts that stretches from Kropotkin to Murray Bookchin historically, and from John Turner to the International Situationists ideologically.” In fact, when we read one of the more famous Kropotkin books – “Fields, Factories and Workshops” – we must agree with this sentence.
However, this contribution is prior to Kropotkin and it can be seen already in the Utopian Socialists like William Morris or Charles Fourier. The Fourier concept of the Phalanstères, in which everything was programmed to seek perfection, maybe to much programmed in my opinion, became later on a fundamental source that inspired many comrades to create communities and millieux libres, like Colónia Cecília in Brazil or Aiglemont in France. This movement became so important that Malatesta, as you know, reacted negatively to it arguing with the isolation of these communities and comrades.
This attraction for urbanism by anarchism come till the present and inside this new wave some names must be emphasized: Colin Ward, Paul Goodman and the Street Farm Group. Colin Ward was an important defender of the do it yourself movement, in which population and architects took their problems in hands resolving them without any State assistance. Paul Goodman books “Growing up Absurd” (1960) and especially “Communitas” (1947) for sure “added depth and rigour to an anarchist critique of the city”, as written by Richard White in “Governance from below: anarchism and a “postneoliberal” urbanism”. More recently, in the 70’s, the Street Farm Group (3 anarchist architects called Graham Caine, Peter Crump and Bruce Haggart) published an underground paper called Street Farm. They practice the so-‐called direct action going from university to university, city to city, showing their works and proposals that could include already ecological houses. The legacy of Goodman, Ward and the Street Farm Group shows very clearly that the critical idea that anarchists are only negative and destructive in their approach is completely wrong. And more than ever, when cities become the extreme capitalist product and conceptional idea, an anarchist architecture and urbanism are needed to counterbalance this and to give alternatives for those that want to live in cities. In this globalised capitalist society, the growing city – the growing urbanisation movement – became what capitalism wants more. In fact, the modern huge human concentration in cities is a direct result of the capitalist production system. Concentrating people – seen as producers and consumers – resources, technology and even productions, in or close to cities, is a way to reduce production and logistic costs (although this cost is not as relevant as it was a few decades ago) and especially is a way to manipulate and control more easily millions of persons. I know that the anarchist revolution will not be tomorrow. However, we must think in the future. How can we deal with cities with millions of inhabitants? How can anarchists assure the management of cities like São Paulo, where many workers spend so many hours coming from home to work that their option is to come on Monday and to return only on Friday because it’s impossible for them – either in time and cost – to go every night to sleep at home? How can anarchist assure the so famous Right to the City and, at the same time, to fight for more healthy and rational cities? The traditional answer that “each community will deal with the problem when we will get there” is not acceptable by “normal” people any more. Marxists give answers; neo liberals give answers; so anarchists must do the same. Obviously we are not vanguards to define the path, but it’s time to present people with clear proposals for the future.